Sinceridade radical

Será o fim dos pontos cegos nas relações?

Sabe quando você está contando para um amigo sobre uma conversa que teve com um outro amigo comum a vocês dois e solta aquela frase: “aí, claro que ele respondeu daquele jeito dele de sempre…blablabla”?

Toda vez que vivo uma cena dessa, seja ouvindo ou falando, minha espinha gela, minha boca seca, minha vista preteja, porque me lembro de um medo secreto que sempre tive: o que as minhas pessoas concordam a meu respeito (minhas chatices, meus fechamentos, minhas fugas)….que eu NUNCA SABEREI?????

É claro que um monte delas eu sei, porque é meu jeito mesmo. Mas eu também sei que tem um zilhão de outras que eu não tenho ideia. E digo isso porque, quando sou eu falando sobre alguém, eu percebo que pessoa-alvo da minha fala não tem nem ideia de que é percebida daquela forma.

Não é aterrorizante?

Disclaimer: Não estou falando aqui sobre querer agradar os outros e ter a ilusão de controle sobre o que as pessoas sentem. Estou focando no fato de que sabemos muito pouco sobre como as pessoas são afetadas pelas nossas falas, ações, jeitos, performances etc.

O silêncio relacional

Existe toda uma cultura implícita em torno do que se “pode” ou “não pode” dizer numa relação, mas a verdade é que poucas pessoas conseguem estourar a bolha da polidez superficial para cuidar das relações de um jeito mais profundo e – por ser mais profundo – também mais desafiador.

Só que a ausência desse retorno (do outro sobre nós e vice-versa), esse silêncio relacional, vai atrapalhando a vida de todo mundo: nós ficamos isolados no nosso jeito, sem chance de mudar algo que ainda não percebemos; e as nossas pessoas ficam incomodadas com a nossa não-mudança! E vice-versa!

É irônico como somos capazes de deixar as pessoas com quem mais nos importamos “no escuro” a respeito de seus comportamentos cansativos; de seus comentários doloridos; de suas manias nocivas; ou, no caso do trabalho, de seu desempenho insatisfatório; de sua dificuldade em compreender a demanda; de sua desatenção aos prazos etc.

Isso só para citar alguns exemplos do que faz a relação ir descendo quadrada pela garganta à medida que o convívio acontece, esperando só ficar impossível suportar mais um minuto sem uma RUPTURA radical.

Ainda bem que a vida corporativa imita a vida!

Eis que depois de 43 anos carregando esse pavor secreto do ponto cego, numa conversa sobre trabalho e carreira com uma grande amiga, ela abre um portal chamado “Empatia Assertiva” na minha mente, na minha vida e no meu coração.

Basicamente, esse livro incrível nos conta, inicialmente, que quando consideramos muito uma pessoa mas não a confrontamos diretamente, nutrimos com ela uma relação de empatia ruinosa (ou nociva). Ou seja, nos importamos com ela, mas não a ponto de encararmos o desconforto de falar com ela sobre algo que a prejudica e que ela pode não estar percebendo.

No trabalho, seria aquela situação com uma pessoa que “é um amor mas tem um desempenho mediano” e só vai descobrir isso quando o punhal da demissão aterrissar no seu peito, depois de um longo abismo de conversas não tidas e verdades não ditas.

E se essa pessoa maravilhosa tivesse sido alertada ao longo do tempo sobre os pontos de melhora? De duas uma: ou ela iria se mostrar inflexível a mudanças, o que aceleraria sua demissão; ou ela receberia a chance de desbravar esse ponto cego e desabrochar as habilidades em questão.

Coisas que só se descobre colocando as cartas na mesa, com coragem, respeito à pessoa, transparência e respirando fundo.

Para não deixar a informação parcial, abaixo colo uma cópia (traduzida por mim) da matriz gerada pela Kim Scott, autora do livro Empatia Assertiva e ex big big boss no Google, Apple e outras. Vale cada página do livro, cada episódio do podcast (esse só tem em inglês) e cada reflexão sobre a visão dela:

Um diagrama de quatro quadrantes conhecido como a matriz da Sinceridade Radical (Radical Candor), que ilustra estilos de feedback. O eixo vertical representa "Importar-se pessoalmente" (Care Personally), enquanto o eixo horizontal representa "Confrontar diretamente" (Challenge Directly). Quadrante superior direito: "Sinceridade Radical" (Radical Candor), resultado de se importar pessoalmente e confrontar diretamente; Quadrante superior esquerdo: "Empatia Ruinosa/Nociva" (Ruinous Empathy), resultado de se importar pessoalmente mas não confrontar diretamente; Quadrante inferior esquerdo: "Insinceridade manipuladora" (Manipulative Insincerity), resultado de não se importar pessoalmente e não confrontar diretamente; Quadrante inferior direito: "Agressividade Detestável" (Obnoxious Agressão), resultado de não se importar pessoalmente mas confrontar diretamente.
O texto está em inglês e português, com uma fonte que imita a escrita à mão nas cores laranja e cinza escuro.
Quadrantes da Empatia Assertiva, de Kim Scott: no eixo horizontal está o quanto confrontamos a pessoa diretamente. O eixo vertical representa o quanto nos importamos com a pessoa.

Mas, voltando ao meu pavor antigo…

Aquele medo do ponto cego relacional valia tanto pra vida pessoal, quanto para a corporativa, lógico.

Agora percebi que escrevi no passado “valia”, como se já não fosse um medo atual…Não me vejo livre dele, de jeito nenhum, mas uma coisa é fato: à medida que comecei a entender e usar esse mecanismo de dizer coisas difíceis-porém-importantes-porém-difíceis-porém-importantes às minhas pessoas ( na vida, no trabalho), me vi nutrindo um respeito maior por elas e pela relação com elas.

Ainda que o vice-versa seja mais raro, eu também tenho gostado de praticar a humildade de processar os desconfortos de alguém diante de mim. Me vejo sempre buscando entender até onde é algo que eu devo mudar para potencializar essa relação (e aí é nítido que isso vai ser ótimo pra mim também), ou se esse item realmente representa um contorno da minha personalidade ou valores que eu não estou disposta a flexibilizar. Aí ele se torna um alerta de um futuro limite para mim ou para a pessoa…

Do meu lado, ao dizer a elas algo que não vem funcionando bem, com a máxima humildade e gentileza que eu consigo, eu percebo dentro de mim que essa relação está sendo valorizada e cuidada.

Não quer dizer que eu não repasse mil vezes o assunto na cabeça; que meu estômago não vire uma máquina de lavar centrifugando quando lembro que vou ter a conversa; que não morra de medo de como vai ser o mano a mano; que não tenha vontade de desistir alegando que deve ser picuinha minha….

É um BAITA processo interno, antes de virar uma coisa “falável”. Mas tem valido ouro investir nesse movimento. Porque ele me liberta. Quando venço o medo (da rejeição, do atrito, de magoar e tantos outros), cresce uma força que vem do meu respeito por mim e pela pessoa. E isso me liberta para expressar coisas que são relevantes para a vida dela, não só para a minha experiência com ela.

Aí, quando eu vejo que a conversa começou e eu não desintegrei e virei pó, a máquina de lavar vai parando de centrifugar e eu consigo concentrar minha energia na sinceridade humana dentro de mim, para alcançar a pessoa o mais gentilmente possível.

Depois – às vezes logo depois, às vezes bastante depois -, a pessoa também percebe que foi considerada de forma sensível.

Afinal, por que alguém proporia uma conversa tão desconfortável, se o assunto poderia ficar lá no armário dos julgamentos calados dela ou das fofocas “inocentes”?

Vamos às estatísticas inventadas por mim

Na maioria dos meus testes, o tempo tem mostrado que:

  • a relação fica forte como um tronco
  • melindres diminuem
  • pensamentos ocultos somem e deixam a mente ocupada com o presente
  • some o sentimento de estar submetido/obrigado a alguém ou situação
  • a sensação de ter coisas que não se pode falar vai embora
  • cai o nível de reclamação mental
  • o prazer pela vida aumenta
  • vive-se uma vida ética

Como a Kim diz no livro, cada um de nós pulamos de quadrante em quadrante várias vezes ao dia, ao longo da vida e de acordo com as pessoas, as relações e as complexidades envolvidas.

Mas cada vez mais eu entendeo que é sobre a decisão de FALAR COM alguém, em vez de FALAR SOBRE alguém.

Exige muita, muita, muita coragem, mas recompensa na mesma medida.

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Daniela Rodrigues
Daniela Rodrigues
1 mês atrás

À medida que, na leitura, eu ia acessando teus convites implicados, janelas aqui se abriam (desde suas frestas) para olhar, com curiosidade, este lugar nada comum: um espaço onde podemos passar a saber, de forma direta e em zelo ao outro, a si, à relação “(…) como as pessoas são afetadas pelas nossas falas, ações, jeitos, performances etc.” — e vice-versa.

Parece-me um caminho propício a uma maior conexão e a um sentido mais amplo de ser-humano-vida, interconectados em consciência.

Que escolha possível, ousada e convidativa!
Grata pela reflexão em mim despertada, amparada por tuas (auto)descobertas, Aline…